Silencioso, simples, inocente, inesquecível!
Eu assisti ao filme “Roma” despretensiosamente há umas três semanas. Navegando pela Netflix, li a sinopse e me interessei pela história de Alfonso Cuarón. E eu realmente não sabia mais nada sobre ele, muito menos que ele já estava sendo chamado de a “obra-prima” do diretor de “Gravidade”, filme vencedor de sete categorias do Oscar em 2014. Tanto que assisti pelo iPad, me encantei e, agora, depois de o longa ter levado dois prêmios do Globo de Ouro 2019 (melhor filme estrangeiro e melhor diretor), vou fazer questão de ver de novo na tela grande da TV – pois na tela gigante do cinema isso não será possível, já que o filme foi feito exclusivamente para o serviço de streaming.
A delicadeza e a sutilidade já começam pela sinopse: na movimentada Cidade do México dos anos 70, a rotina de uma família de classe média é acompanhada de maneira silenciosa por uma pequena, dedicada e batalhadora mulher, Cleo (Yalitza Aparicio), que trabalha como babá e empregada doméstica. Durante um ano atípico, diversos acontecimentos inesperados começam a afetar a vida de todos os moradores da casa, dando origem a uma série de mudanças. E Cleo, com sua serenidade e discrição, escolta tudo e todos, da casa aos quatro filhos e ao cachorro da família, com unhas e dentes, com paixão, força, determinação e persistência.
Porém, “Roma” não é tão simples assim. Não é apenas um filme sobre a vida dura de uma empregada doméstica. Todo em preto e branco e cheio de referências da vida íntima de Cuarón, a produção intimista é inspirada na infância do diretor e está sendo extremamente elogiada como uma metáfora do país e de sua história, de seu passado e de seu presente. Além disso, também pode ser considerado como um sensível relato sobre realidades, alegrias, tristezas e cotidiano oculto por trás da vida doméstica e um testemunho desolador – e, ao mesmo tempo, esperançoso – sobre as desigualdades sociais e raciais, não apenas do México, mas de toda a América Latina.
Não à toa, você percebe a delicadeza de “Roma” logo nas primeiras cenas, dedicadas e delineadas ao cotidiano simples de Cleo, ou até mesmo no título do filme, que é o nome do bairro onde a trama se desenrola, Colonia Roma, uma zona ocupada pela classe alta mexicana. O longa, que pode fazer história como a primeira produção da Netflix a ser indicada às principais categorias do Oscar, foi gravado no próprio bairro mexicano, com seu intenso tráfego aéreo e sutil trânsito na rua, tudo meticulosamente pensado para que se parecesse com o local onde o diretor cresceu.
E as referências não param por aí: o próprio cinema se torna símbolo do filme. Nesse metarrelato, do cinema dentro do cinema, as crianças da casa e a própria babá vão ver “Sem Rumo no Espaço” (1969), um dos filmes favoritos do diretor quando pequeno e que lhe serviu de inspiração para “Gravidade”. Outros filmes do diretor, como “E Sua Mãe Também” (2001) e “Filhos da Esperança” (2006), também são lembrados. E ainda o mais forte: Cuarón dedica o filme a Libo, que é como sua família chama Liboria Rodríguez, uma mulher de origem indígena que começou a trabalhar com eles quando o diretor tinha só 9 meses. Assim como ele, ela é a base da história. Em entrevista, o diretor disse que, à medida que ele cresceu, se deu conta de que Libo também era uma pessoa que tinha necessidades, conflitos e uma vida própria, e não era alguém que só lavava sua roupa ou preparava sua comida.
É assim “Roma”. Da sublime fotografia à contenção narrativa, uma verdadeira homenagem que fala de dor e amor, de luta e esperança, de afeto e medo, de inocência e submissão, de simplicidade e memória.