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Crônica: Cinema e religião

Domingo fomos ao cinema nos despedir dos filmes nacionais. Pois a onda conservadora engoliu nossos diretores e roteiristas. E o retrato de um país pintado aos olhos fidedignos, ora de Walter Salles, ora de Fernando Meirelles, foi parar nos mares abissais do falso moralismo. Lá se perderam para emergir um mundo pior. Revelou-se então um Brasil acima de tudo, Deus acima de todos e o pensamento intelectual ladeira abaixo. Da bandeira nacional, leu-se “Ordem e Pregresso”, o que levou Millôr Fernandes a observar, perspicaz, lá de cima: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”. E o futuro ficou para trás.

 

Sem futuro à vista, eu e meu amigo e companheiro de café, água com gás e cinema, o jornalista Eduardo de Ávila, nos entretemos com o presente nefasto que se revelava na antiga telona do Belas Artes. Assistíamos ao “A Cidade dos Piratas”, animação satírica baseada na obra da cartunista Laerte Coutinho e dirigida por Otto Guerra, que nos arrancava risos de humor ácido. Na poltrona ao lado, o cineasta mineiro Helvécio Ratton, que não sabia se ria ou se chorava. Pois também se despedia do cinema.

 

A história começava quando o rio Tietê não era esgoto. Era rio de água limpa em tempos de Brasil colônia. E quando um bandeirante desbravador das matas virgens resolveu beber água limpa, bebeu urina de índio, pois um índio urinava rio acima. 1 x 0 para o índio, que comemorou sacolejando desdenhoso o pênis borrachudo e sorrindo um sorriso malvado. Comemoramos também. Até ganhei um adesivo com a simpática imagem obscena ao retirar o ingresso na bilheteria do cinema. Não quis guardar, não quis jogar fora. Mas colei a estampa no vidro de um carro na rua. Antes, me certifiquei de que o motorista vestisse verde e amarelo —  patriota de um  Brasil acima de todos. E xixi de índio rio abaixo.

 

Após essa singela correção na história civilizatória do Brasil, deu-se vez ao drama de um homem retratado como o Minotauro no labirinto de Creta. Corpo de homem e cabeça de touro, na animação, era Laerte Coutinho, que na vida real carrega corpo de homem e cabeça de mulher. E o labirinto de Creta era uma cidade desgovernada por um governante que odeia gays, mas que sonha com gays e acorda assustado — e excitado. Este ponto não encontra correspondência no mundo real. Pois a realidade é pior.

 

Pior é que talvez seja este o último filme a pisar no dedo mindinho do pé do governo brasileiro em tempos de censura, obscurantismo e retrocesso cultural. E do cinema nacional nos despedimos — eu, Eduardo e Helvécio Ratton. Pois hoje soubemos dos critérios para comandar a Ancine, principal fonte de financiamento dos filmes brasileiros. Deve-se “saber recitar de cor 200 versículos bíblicos, ter os joelhos machucados de tanto ajoelhar e andar com a Bíblia debaixo do braço” — palavras do presidente. Em “Bacurau” não havia cinema. Pelo menos a igreja estava sempre fechada.

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