Quando decidi ser jornalista eu queria contar histórias. Queria mostrar para as pessoas aquilo que não tinha visibilidade. Lembro que ainda pequena, assistia ao Globo Repórter e ao Globo Rural para confirmar muito do que eu aprendia na escola. Admirava os jornalistas que me comprovavam a existência de doenças como cólera, que na Amazônia ainda tinha índios e que os reflexos das guerras eram reais no exterior. O tempo passou, me tornei jornalista, e apesar de não atuar na área ainda conto minhas histórias através da literatura. Quem quiser pode conferir algumas delas aqui. Por isso amo livro-reportagem e admiro muito quem se dispõe a contar histórias reais, sem filtro e mostrar aquilo que ninguém tem coragem de fazer.
“Aquilo que resta de nós” é o primeiro livro do jornalista Igor Patrick, que depois de passar por grandes veículos de comunicação, como “O Tempo”, “Hoje em Dia” e rádio “CBN”, atualmente trabalha como correspondente da agência Russa Sputnik News. O livro já te prende pela capa impactante, de pés descalços, sujos, acompanhados da frase: “Um pedido de socorro de haitianas estupradas por soldados da ONU”. Engraçado que o primeiro pensamento é: Como eu nunca ouvi falar desses casos? A lembrança que tenho do Haiti é das inúmeras tragédias que assolam o país, das tropas brasileiras escoltando a nossa seleção que fez um jogo histórico por lá, do quão os haitianos dependem das ações humanitárias de entidades como a ONU e de pessoas como a brasileira Zilda Arns que morreu justamente em um terremoto no país. Igor expôs em poucas páginas uma dura, cruel e impiedosa realidade de mulheres abusadas por aqueles que deveriam proteger, promover a paz e dar esperança. Ele não só as ouviu como deu voz e visibilidade a 4 de muitas vítimas, que hoje se sabe, viveram o terror do estupro, e a tristeza da impunidade.
Igor contextualiza o leitor através de fatos e dados, os motivos que levaram ao país as forças de paz. Apresenta os costumes e tradições de um povo sofrido, sem perspectiva, que luta pela sobrevivência diária. E os chocantes relatos das vidas de Martine, Jacquendia, Régine e Fabiana, seus sonhos da infância, ações que as levaram a conviver com os militares, a violência do abuso, o conflito pós ato e a devastação vinda com as consequências. São relatos que apesar de fortes, foram repassados ao leitor de maneira sensível e cuidadosa. Li em uma tarde, mas vou refletir a vida inteira. Não existe uma campanha #somostodasmulheresdoHaiti, assim como não houve mobilização aos mais de 300 mortos em um atentado recente na Somália. São fatos que precisam ser mostrados e se não for pela grande imprensa, que seja então pela literatura. Muito mais que um livro-reportagem, “Aquilo que resta de nós” é o boletim de ocorrência de uma denúncia grave.
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