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Quarto de Despejo – Diário de uma favelada | Carolina Maria de Jesus

Quarto de Despejo – Diário de uma favelada | Carolina Maria de Jesus

Quarto de Despejo – Diário de uma favelada é um dos clássicos mais injustiçados da literatura brasileira. Apesar de ter sido publicado na década de 1960, e aclamado no exterior, por aqui quase ninguém conhece a Carolina ou sequer ouviu falar no seu impactante diário.

 

A obra já vendeu mais de um milhão de exemplares, sendo traduzido para mais de 14 idiomas. É um dos livros mais difíceis de se encontrar para comprar, por exemplo, principalmente pelo preço da obra. Tive a oportunidade de ler um exemplar já bem gasto, mas não menos importante, da Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais. O livro é um dos mais procurados do acervo.

 

Contexto: Carolina Maria de Jesus foi uma mineira que saiu muito cedo da cidade de Sacramento no interior de Minas, para tentar uma vida melhor em São Paulo. Sozinha, após a morte da mãe, fez a viagem toda a pé.

 

Na capital paulista trabalhou como doméstica, porém após engravidar do primeiro filho teve que ir morar na rua, até ser enviada para o terreno onde formaria a favela do Canindé. Chegando ao local que também servia como lixão, Carolina conseguiu tábuas, madeiras, latão, papelão, e sozinha, construiu o seu próprio barraco.  

 

Mulher negra, solteira, favelada, de vida extremamente miserável, Carolina viveu na favela de meados de 1937 até 1960. Amante da literatura, ela se denominava poetisa, e registrou em diários a rotina implacável da sua vida naquele lugar. Não é uma vivência, é uma sobrevivência dura, árdua, que choca e dá aquele nó na garganta ao ver a luta de uma mulher para garantir o alimento, e apenas ele, aos seus filhos. É impactante.

 

Em 1958 os mais de 20 cadernos de Carolina foram descobertos pelo repórter Audálio Dantas (Grupo Folha) que, incumbido de produzir uma reportagem sobre a favela, decidiu publicar a história que Carolina contava, compreendendo a importância do hoje famigerado “lugar de fala”, como ele aponta no prefácio do livro.

 

“A história da favela que eu buscava estava escrita em uns vinte cadernos encardidos que Carolina guardava em seu barraco. Li, e logo vi: repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.” (pág.3)

 

A propósito da publicação do livro, as edições mantiveram os relatos na íntegra, com os erros de português da escritora, aqui também mantidos nas citações.

 

Os relatos: Em tempos de Betina e seus milhões aos 22 anos, essa história nos traz de volta a realidade e escancara a vida atual de cerca 15,2 milhões de brasileiros que vivem, até hoje, abaixo da linha da pobreza, ou seja, nas mesmas ou em condições até piores que as relatadas por Carolina em seu diário. Os dados são do IBGE divulgados no final de 2018.

 

Muito mais do que ter empatia pelo próximo, é compreender que quase 70 anos separam os relatos de Carolina ao hoje, e infelizmente pouco foi feito para mudar essa realidade e dar uma vida digna a todos os brasileiros, sem exceção. Essa frase é utópica, entenda que somos privilegiados por simplesmente termos o que comer todos os dias.

 

“Mas, o pobre não repousa. Não tem privilégio de gosar descanço”. (pág.10)

 

O diário começa com relatos de 1955 e dão um salto de 3 anos, a partir da página 25. Tão cedo esse avanço, tão logo percebemos que nada muda em sua situação. Carolina é lúcida e tem plena consciência dos efeitos que o seu diário provocará em quem ler. É honesta com o leitor e muito sincera ao descrever e expor os problemas da favela, que aliás, ela odeia veemente.

“O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preços, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela”. (pág.19)

Sem água encanada ou esgoto. Conforto é zero. A convivência com pulgas e ratos faz parte da normalidade diária. A propósito do dia a dia de Carolina, sua rotina começa cedinho, 5 horas, às vezes 4h, ela já está na fila para pegar água na bica comunitária. Em seguida partir para catar recicláveis e alimentos descartados no lixo pela população e empresas.

 

Violência: Nos relatos, ela expõe o constante ciclo de violência a que os moradores eram submetidos, seja violência doméstica (e há muita), a desavenças entre vizinhos, que quase sempre termina em morte. Carolina repudia a violência, e é uma das responsáveis por apaziguar as brigas, ou simplesmente chamar a patrulha como era conhecida a polícia à época.

 

A vizinhança é hostil. Agridem os filhos de Carolina quando ela está ausente. Não se preocupam com a nudez feminina ou masculina, frente as crianças, algo que Carolina critica duramente.

 

Os relatos de abuso e exploração sexual também chocantes. A vida na favela é sofrida, as festas regadas a pinga terminam em briga e quebra quebra. Em vários momentos ela externa uma preocupação sincera com as crianças. A consciência do convívio de crianças diante de tanta miséria, violência, maus comportamentos, bebida alcoólica, compromete um futuro digno àqueles que já nascem sem perspectiva de vida.

 

Fome: Se o entorno é hostil, o dia a dia de Carolina e seus três filhos é cruel, nas pouco mais de 160 páginas do diário. Ela precisa mantê-los vivos, educados e com um esperança de futuro, mesmo que a menção ao suicídio seja aventada em vários momentos da história. João (11 anos), José Carlos (10 anos) e Vera (5 anos) são a razão de viver de Carolina.

 

É uma saga diária pela sobrevivência.Restos de comida e alimentos retirados do lixo, sopa a base de ossos, a rara alegria de comer um pedaço de carne. Não há conforto, nem regalias, o que se faz diariamente é pura e simplesmente para comer.

 

“Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguem. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está ao alcance do favelado, fico sorrindo atoa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante.” (pág.44).

 

E nunca é suficiente. Carolina trabalha todos dias, mais de 15 horas, contudo o dinheiro nunca dá pra nada. É como se a recompensa não valessem os esforços. A fome era sempre maior que os ganhos. É impossível não refletir sobre o nosso desperdício diário.

 

“Hoje fiz arroz e feijão e fritei ovos. Que alegria! Ao escrever isso vão pensar que o no Brasil não há o que comer. Nós temos. Só que os preços nos impossibilita de adquirir.” (pág. 133)

 

Crítica política: Esse livro deveria ser leitura obrigatória a todos os que se dispõe a concorrer a um cargo público no Brasil. A visão crítica que a Carolina tem das necessidades da favela do Canindé, são pertinentes ao hoje. Ela critica duramente, inclusive dá nome, aos políticos que só lembram da favela e dos seus pobres habitantes durante as eleições.

 

“… O que eu aviso aos pretendentes a politica, é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la.” (pág.26)

 

Solidariedade: Em meio à hostilidade da vizinhança, há solidariedade. As vizinhas que se ajudam e trocam pequenas porções de gordura, açúcar ou farinha. Ou os mais abastados, vizinhos que ela denomina como “de alvenaria” que ofertam um prato de comida, ou uma porção que não lhes fará tanta falta.

 

Há ainda os compradores de ferro, em especial senhor Manoel, que sempre pagava mais do que de fato a mercadoria valia. Isso deixava Carolina feliz, apesar de sempre lembrar a eles que estavam pagando mais.

 

Carolina descreve com carinho as ações promovidas pelos Centros Espíritas e Igreja Católica, que oferecem roupas e agasalhos no inverno, cestas básicas sempre que possível, além de medicamentos e serviços de saúde. É muito mais que caridade, é empatia e amor ao próximo.

 

Amor pela literatura:  

“Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o radio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem.”. (pág.22)

 

Um amor que sobressai a fome, a miséria, a violência e que dá luz a vida de Carolina. Embora em alguns momentos ela criticou duramente o filho que sempre lê quadrinhos.

 

A literatura era o bálsamo que mantém Carolina viva e lúcida em inúmeros momentos de dificuldades, que corresponde a 99% do livro.

 

Quarto de Despejo – Diário de uma favelada é uma obra prima da literatura nacional. Leitura mais que obrigatória a todas as faixas etárias leitoras desse país. Prestigie Carolina Maria de Jesus.

 

**Crédito da imagem destacada: Agência Brasil

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Esta coluna é publicada invariavelmente as segundas, porque às vezes o livro é bem grande (rs)

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Elis Rouse
Sou Elis, não sou Regina; sou do interior e amo a capital; sou jornalista, mas não trabalho em jornal; amo ler, sonho escrever; dicas vou dar, dicas quero receber; experiências vamos trocar; literatura brasileira vamos amar!